sábado, 20 de junho de 2009

Júlia

Júlia tinha feito até o momento 8 aniversários, sendo que o último tinha comemorado havia uns dois ou três meses apenas, ela mesma não sabia exatamente. No seu quarto tinha uma janela bem grande que quase nunca era fechada, isso porque ela acordava bem cedo logo quando a luz entrava; afinal quando se tem essa idade o tempo de um dia é pouco para aprender tudo aquilo que vai ser necessário nos anos seguintes. Da janela dava pra ver um montão de coisas como casas, ruas, o lado de um parque e uma igrejinha tímida, mas ver mesmo a escolinha vizinha ao prédio ela só conseguia nos dias de festa quando alguém a levantava sobre o parapeito ou quando seu pai estava muito bem humorado - ele subia ela em um banquinho e os dois ficavam ali comentando longamente a vida social escolar. Havia sim, o que é raro, algumas professoras bonitas e o pai podia se dar ao luxo de ter uma preferida porque era separado. O nome dela era Mariana (ela morava no prédio). Apesar de Júlia também gostar bastante dela, ela preferia as mulheres loiras, sobretudo as de cabelo cacheado. Ela mesma era loira, ou quase. Bom, preto o cabelo não era, disso ela tinha certeza e essa decisão lhe bastava enquanto não tinha idade para pintá-los ainda mais claros. Ah sim, o seu pai chamava-se Leonardo.
Ora, então Júlia acordou naquele mesmo horário de sempre, ela tinha aula, olhou pela janela e... absurdo, estava tudo cinza de novo. Não era justo, o tempo daquele jeito outra vez! De que servia a janela então? e foi, inconformada, despertar seu pai:
-Oi.
-Oi, bom dia Júlia. Tudo bem?
-Mais ou menos, pai.
-Algum problema?
-Não sei se é um problema. Acho que hoje acordei meio indisposta com o tempo de São Paulo.
-Como assim?
-Ah, é um tempo sem sentido, é um tempo desleal.
-Ai, Júlia. Só você.
-Eu contei.
-Contou o quê?
-Eu contei; hoje faz 10 dias que o tempo está assim. E veja bem que já estamos na primavera. Se continuar desse jeito é melhor tampar a janela do meu quarto e no lugar colocar um quadro do mesmo tamanho onde tenha um sol.
E ela saiu do quarto do seu pai pisando forte no chão e com uma cara muito, muito feia – inacreditável esse clima!

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Rua dos Bobos Nº 0 ou O Nadismo

“Nada disso parece sair de um nadismo absoluto.Nadismo! Meu tempo criou a escola do nadismo, posterior aos falsos nudismos. Minha palavra é essa, minha lei essa, minha intensa pergunta é esta: que palavra superará ao nadismo?”
Shá
Wikipédia:
O Nadismo ou Movimento Nadista nasceu de inseminação artificial. Acredita-se que teve início em 1974, no Timor-Leste. Quando criança, ria-se muito de quase tudo e achava que quando crescesse ia ser político, mas nada dizia. Como residência não teve nenhum lugar, excetuando, é claro, a hoje famosa Rua dos Bobos, nº 0. Seus professores acreditavam que ele sofria de distúrbio de déficit de atenção, o que não era totalmente verdade – a aula de que mais gostava era física (sobretudo no conceito de inércia, se comprazia deliciosamente refletindo sobre o vácuo) e odiava com todo o seu vocabulário a aula de inglês (realmente não entrava na sua cabeça o fato do verbo “it rains” ter sujeito).
Sua adolescência foi solitária. Pouco a pouco, foi tornando-se um jovem sisudo e afastado. Estando já em Beta nessa época, esqueceu-se de passar gilete quando deixava de ser imberbe. Foi por esse motivo que seus colegas, maldosamente, alcunharam-no de filósofo. No começo não ligava, mas um dia sentiu que aquilo estava indo longe demais, precisava tomar uma atitude – e não seria difícil no estado nervoso em que se encontrava; arregaçou as mangas, ergueu o punho e abriu uma enciclopédia. Lá encontrou, além de outros, os nomes de Nietzsche e Sartre. Leu boa parte da obra de cada um, compreendeu o conceito de Niilismo, mas não achou nada. Em seguida debulhou Camus e Schopenhauer e do Existencialismo e da Eudemonologia nada achou.
Já adulto, maduro e estudado, preferia votar sempre nulo. Foi por esse e por outros motivos que, quando começou a escrever seus melhores textos, acusaram-no de fútil, bossanovista, alienado e parnasiano. Mas o Nadismo sempre teve consigo a certeza de que, diferentemente das outras escolas, não priorizava a forma; também o conteúdo não priorizava. Era pura essência, afinal descendia do nudismo; naquela época era já quase luz. Em 2002, após uma parada cardíaca facilmente reversível, os médicos não se deram ao trabalho de fazer massagem cardíaca e em 20 de Maio veio a óbito. Não se ouviu mais falar, o Movimento esvaziou-se com o vento.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

O hospital público, a literatura e o cinema

Entrando pelo pequeno portão de ferro, tive o prazer de ver uma kombi-ambulância que parecia ser cenário de um filme da Segunda Grande Guerra. Toda verde musgo, as janelinhas pintadas de branco com uma cruz vermelha e a sirene em cima que parecia de brinquedo. O pátio externo do hospital assemelhava-se a uma cena de Rubem Fonseca: viaturas policiais, PMs alertas de arma na mão. Mais à frente do pronto-socorro estavam o prédio em reforma estática (isso lembra-me Realismo Fantástico) que abrigava os quartos para estadias mais longas. O saguão da recepção me lembrou alguns cômodos Dostoievskianos, a economia de móveis balanceada pela quantidade de funcionários públicos que estão ali apenas para serem funcionários públicos.
Subimos o elevador, 3º piso. O corredor, se houvesse mais leitos e materiais para abrigar enfermos ali mesmo, pareceria ao da primeira cena de Invasões Bárbaras. Mais funcionários conversando. No quarto em que minha tia-avó ficava, as camas assemelhavam-se a filmes manicomiais do começo do século passado. Camas de ferro grosso já mastigadas pela ferrugem, um cheiro fortíssimo de álcool com um não-sei-o-quê que me deixou enjoado mesmo depois de almoçar, jantar, etc - talvez seja o famoso Cheiro do Ralo.
-Oi, meu filho, que bom que vocês vieram. A tia tá mal, olha, não pára de vomitar.
- Tia, pense pelo lado bom. Se esse hospital é de urgência e a senhora ainda não foi operada, quer dizer que não está tão ruim assim.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Questão (inacabado)

Caminhávamos baixo àquele céu magoado quando me salta ao coração um sentimento em forma de pergunta e vai direto aos lábios, sem passar pela cabeça, rota que aliás é a menos longa e mais natural. Perguntei a ela então o quê poderia existir de mais triste que um quarto sem janelas. Respondeu dizendo que certamente haveria algo pior; depois franziu as sombrancelhas, ficou alguns segundos em silêncio e fez um bico, atualizando que não estava certa mas que, a princípio, no seu modo de ver, deveria sim existir qualquer coisa ainda mais terrível. Nos encontraríamos dali a alguns dias e reiterou que, apesar do trabalho, seguramente viria com a resposta, se houvesse uma. Eu sabia que, em caso afirmativo, ela a traria - sempre foi muito precisa.
O tempo passou um pouco coxo e dali a exatas duas semanas soa o telefone - era ela. Me diz que naquela mesma tarde a resposta apareceu, assim "como alguém que tem vida própria e decide as coisas sempre ao seu ar". Eu estava ansioso – confessei. Ficamos de tomar um café no dia seguinte.
Ela começou dizendo que não gostava para nada de questões dialéticas, mas que foi a saída que encontrou, mesmo tendo feito o raciocínio inverso:
- A única coisa que pode existir mais triste que um quarto sem janelas é uma janela sem quarto.
Duvidei; incialmente, só para ter minha parte no mérito da questão.
- E posso saber por que uma janela solitária é assim tão triste?
- Não te parece óbvio? Um quarto sem janelas, apesar de triste, continua sendo um quarto. Já uma janela sem quarto são 4 pedaços de madeira pregados.
- Talvez possa ser chamada de moldura e isso seria uma salvação, ou ao menos uma alternativa. Algo como uma pessoa que tem um diploma mas trabalha em outro setor por falta de opção…
- Moldura de quê, de vento? Uma moldura pressupõe uma parede. Ou você já viu um quadro flutuando?
Precisava de uma idéia e eis que, com um gole profundo de café, me surge:
- Um quadrado de madeira sem parede ainda assim tem a sua liberdade, a sua autonomia, o que lhe permite ser original. Mas o quê dizer daquela caixa claustrofóbica de seis lados cerrados?
- Você não entende, meu caro, a questão é mais sensível - uma janela sem parede é a crise por excelência. Vou tentar explicar. Se um quarto sem janela fosse uma pessoa pobre, a janela sem quarto seria uma pessoa rica que não faz nada com o dinheiro. Entende?
Ela estava, como sempre, dificultando as coisas. Eu:
-Pense em uma janela sem quarto, ela pode ser colorida. Um quarto sem janela só tem uma opção: branco. É a apatia, a anemia, a indiferenca…
Ela, enfim, vacilou:
- É, talvez… mas por que não poderiam pintar o quarto? Talvez um azul claro desse um aspecto mais aprazível…
Ela estava distraída, mexendo a colher no que restou do café e eu, claro, aproveitei:
- Me desculpe falar dessa maneira, mas agora você foi inocente. Por que alguém que tenha um quarto sem janela o pintaria ao invés de usar o dinheiro para colocar uma, o que lhe proporcionaría, ao menos, o dobro da alegria?
-Talvez estivesse preso…
-E preso tem tinta?
Esse foi o momento em que ela se irritou de verdade:

Isabela - Curta metragem

Curta metragem feito para o concurso Claro Curtas. O tema era "Diversidade e Inclusão". As regras eram o tempo e a restrição de qualidade da imagem. Eu assino o roteiro.