terça-feira, 10 de maio de 2011

Livreto da Despedida

                                    Terminal (Houaiss): s.m. aquilo que termina, completa; final.  estação final ou ponto de convergência de uma linha. adj. terminante, decisivo.
 
 
A caminhoneiros, caixeiros-viajantes, turistas, fuzileiros, missionários, exilados forçados ou forçosos, aeromoças, golpistas, corpos diplomáticos, fugitivos; a andarilhos, enfim, nas suas variadas interpretações.

As horas coseram, devagar, a linha invisível que liga os momentos; o novelo dá seu derradeiro e tímido salto, um suspiro – um soluço. Finda uma era, o sentimento estará irremediavelmente objetivo. O álbum de fotos, congelado. Urge o átimo que encerra, que tampa, que veda: a despedida.
Presume-se a necessidade de administrá-lo:
Aconselhamos, primeiramente, não situá-la em lugares em que passamos todos os dias. É preferível o pitoresco ao que reporta à memória coletiva, uma vez que ela deve ser acompanhada de certo sentimento emancipador de inadequação que pode, com este simples cuidado, ser potencializado. Monumentos decadentes, sarjetas e saguões verde-musgo são sugestões de ambientes externos. Dos internos, poderíamos listar, por exemplo, antiquários, tabernas ou outros sítios que, por tradição ou negligência, remetam ao pó. Por outro lado, não se receitam localizações ditas presunçosas, ou seja, que desviem a atenção para si; privilegia-se o ordinário em detrimento do extravagante, pois o pensamento deve estar desanuviado. O asseio medíocre não subtrai, mas cuide-se para que haja o conforto mínimo. Sugerimos, por fim, o habitado ao ermo – a multidão, na sua busca cotidiana, acentua, surpreendentemente, a sensação de solidão.
Recomenda-se luz afável; parca, se possível; bruxuleante, se dramático. O noturno é, em geral, melhor do que o diurno, sendo que o entardecer tange a perfeição; se de noite, o mesmo efeito de contraluz pode ser produzido por alguma fonte de ocasião como um farol de ônibus antigo (os bondes quase já não se encontram) ou um poste que pestaneja à medida tosse – eletricamente, como uma cigarra bêbada. Evita-se luz branca. Mais ao fundo de um abraço terno, difícil seria não imaginar um luminoso que carece de uma letra há pelo menos dois anos e em que já se pode ler qualquer outra palavra engraçada. Quando o cenário é intimista ou sente-se a necessidade de colorir, é preferível o cinza ao verde; o marrom ao vermelho. O marinho ao celeste.  Em uma mesa ao lado, talvez o movimento de um cigarro lembre que a vida é dura e que todos temos nossas bengalas. Se um pouco mais escuro, com um bocado de sorte e uma gota de sonho, haveria, lá e cá, sombras pontiagudas como estalactites ou que convidassem à reflexão como as formadas por vitrais de igreja.
As condições climatológicas privilegiam à medida que se aproximam das extremidades do termômetro, barômetro, pluviômetro, etc. Apesar disso, convém estar propriamente equipado e seguro, uma vez que o instante exige rigor. A bordo do charmoso vapor da Companhia Tropical Fluvial, haveria de se usar chinelos em razão da umidade escaldante. Na Estrada de Ferro Transpatagônica, caberia deixar à mostra nada mais do que a pupila. Apesar disso, há um ganho de encanto em determinadas situações: para uma chuva torrencial, um único guarda-chuva. Se venta, saia florida. Para lama, barra da calça baixa. Pequenos contratempos sublinham um momento intenso. No mais, se concilia a indumentária à prática pessoal.
Sobre o que de um ponto vista normativo seria a etiqueta, três ou quatro indicações satisfariam. Não cabe aqui, de forma alguma, a conduta efusiva: independe do caráter da separação o decoro fundamental. Rondar os limites da temperança seria simpático. Os gestos devem ser contidos como uma aposta. Seria o olhar a única maneira de se conversar sobre cumplicidade? Talvez, se não houvesse o recurso da lágrima. Uma: preguiçosa, vacilante. O inverso, o pranto copioso, pode lograr o mesmo fim se natural, insuspeito e irrepreensível (a má execução, nesse caso, pode resultar em trágico cenário). Estando ali por perto, ouviríamos o ruído indistinto e, não sabendo precisar origem ou distância, ao virar, curiosos, nos depararíamos com tal cena, emocionando-nos também.
Ainda. Pratos acidentais somam. Optamos por bebidas quentes. Agendá-la em dias de semana aporta relevo, sobretudo os inaugurais. Não é necessário investir em presentes. Apesar disso, uma vez inevitável, nunca se faria mais acertada que aqui a denominação “lembrança”. Há de ser dada no instante e aberta já se afastando do ser querido. O abraço apresenta protagonismo sobre o beijo. Interessa que nessa mesma semana tenha lugar algum fato histórico considerável, por questões de reminiscência futura. A sinalização é tanto mais memorável quando mais indecifrável for a língua em que estiver. Por fim, o horário deve, infalivelmente, ser checado em relógio público – de ponteiro. Se o sentimento transbordar, algo soará.